28 de abril de 2011

Liquidificador

Lucas tirou o pijama e depois de meia-hora estava saindo de carro para o seu, digamos, suportável e rotineiro trabalho.
Está empregado numa agência de publicidade há quinze anos, onde sempre se esforçou para manter seu emprego junto ao departamento de finanças.
Tem um filho de 18 anos chamado Alexandre, um sonhador juvenil, e uma mulher independente, mas conservadora, Dinah.
Lucas formou-se em Administração de Empresas numa faculdade de interior, e aos 25 anos trocou o medo que sentia pelo pai, pelo medo que agora sente em relação aos seus superiores.
Durante o serviço, naquele dia, discutiu moderadamente, como sempre, com Elvira, uma colega de setor.

Elvira é dócil, bonitona, carente e tem traços italianos, mas tem medo de se envolver com qualquer um que se aproxime dela. O que ninguém sabe é que seu padrasto a violentou sexualmente aos 11 anos de idade.

Lucas não tem mais o brilho nos olhos, aquele brilho que se tem quando ainda se sonha com algo que se espera cair do céu.
Debruçou, fechou os olhos e sentiu vontade de ir para casa dormir. Maldito foi aquele filme da noite anterior.
Cochilava sobre os papéis de sua mesa, quando ouviu Eduardo chamando-o para almoçar no restaurante que fica em frente à agência. Lucas olhou para Eduardo por algum tempo, levantou-se e saiu para comer.

Eduardo não assiste aos filmes de terror, pois seu medo mórbido pela morte é assustador. Sempre foi o mais forte da turma na escola, batia em todos que o desafiavam, mas algo o devorava todos os dias: a hora da sua morte.

Chegando ao restaurante, pediram: panquecas, salada de espinafre com tomate, arroz de forno e refrigerante. Quem os atendeu foi Lígia, a garçonete responsável pela metade da freguesia masculina.

Lígia é sedutora e inteligente. Aliás, faz-se de burrinha para conquistar os homens com mais facilidade.
Acostumou-se a agir assim depois que passou pela puberdade e se tornou mulher. Seu medo de envelhecer fazia com que sua mente pensasse que ela seria eternamente criança.Se agisse responsavelmente ou inteligentemente deixaria de ser um “Peter Pan” para se tornar um adulto.

Lucas comeu somente uma panqueca, pois não se sentia bem. Tomou uma água mineral com gás para encerrar sua refeição e voltou para a agência.
Ficou durante toda à tarde enrolando, já que não queria fazer nada naquele dia. Quando seu chefe passava por perto, pegava sua flanelinha e fingia uma faxina em sua mesa.

Seu chefe chama-se Vasconcelos, um minúsculo homem que bota medo em todos os seus subalternos. Mas seu medo em relação à inferioridade é terrível. Para fugir desse medo costuma impor a ordem, visto que pessoas autoritárias sentem-se obrigadas a agirem assim.

Chegou em casa já à noite, pois o trânsito sempre tumultuado infernizava sua vida todos os dias, fazendo com que ele entrasse pela porta e não conversasse com ninguém. Trancava-se por um longo tempo no banheiro, e masturbava-se em cima das lembranças de sua juventude. Antes de dormir, um boa-noite era seu momento sexual com sua esposa.
Dinah sonhou naquela noite com um belo rapaz que não conhecia. Beijou-o e despiram-se sobre um belo campo, mas ao tocá-lo seu rosto transformou-se no rosto de seu filho. Acordou assustada e totalmente suada, levantou-se, foi até o banheiro, lavou o rosto e voltou a dormir.

Dinah sente medo de tudo e de todos. Seus anos de casamento aos poucos a tornaram uma mulher sem vida e o pior, sem esperanças.

Alexandre em seu quarto, acendia e apagava a luz muitas e muitas vezes, levantou-se, pegou um pouco de erva, uma revista de sacanagem e abriu a janela. Ficou no telhado fumando e se masturbando, imaginando ser um ator de filme pornô.
Adormeceu às 03:00 h da manhã mesmo tendo que acordar muito cedo.

Suas noites de insônia tinham explicação: seu medo de dormir. Alexandre achava ridículo ter que mergulhar numa imensidão obscura e sem vida. Talvez no fundo ele fosse mais uma vítima do medo da morte.

Quando acordou, Lucas assustou-se por estar abraçado à sua esposa. Achou legal e continuou naquela posição, mas Dinah despertou em seguida, dando um pulo da cama. Perguntou o que eu estava fazendo e que horas eram.
Já na mesa posta para o café, comeram silenciosamente, como sempre, até que Alex quebrou o silêncio.
-Eu não suporto mais a idéia de ir ao colégio.
-Não sei por quê?! – respondeu seu pai.
-Dê graças por ter tudo aquilo que eu sempre quis ter quando tinha a sua idade. – disse Dinah.
- Eu não sou você! – explodiu Alex.
- Cale a boca! Será que não existe mais respeito pelos pais? Nosso dia ainda nem começou e você vem nos dizer que não suporta mais ir ao colégio? Quem você pensa que é? Um rei e nós súditos? Eu pago o seu colégio. E não admito que você diga uma palavra, pois você irá me agradecer num futuro próximo. – explodiu também Lucas.
- Mas eu só queria...
- Eu não quero mais discutir com você. Muito menos continuar ouvindo a sua voz. Por favor, levante-se agora e vá para o colégio. – finalizou o chefe da família.

Um gosto amargo era o que Alex sentia quando queria chorar. Enquanto andava em direção ao colégio, seus vizinhos o cumprimentavam com sorrisos que todos os dias se repetiam como se todos os dias fossem iguais. Um filme que se repete insistentemente.
Ao chegar à esquina, onde deveria virar à esquerda, seguiu em frente. Andou, andou, até parar sobre o rio que corta a cidade, na ponte da auto-estrada.
Sentou-se no beiral, acendeu um cigarro e ficou olhando para a imensidão de água abaixo de si.

Sempre teve medo de atravessar pontes. Quando criança sonhava que estava sobre uma, mas nunca conseguia atravessá-la, pois um medo extremo, o dominava fazendo com que ficasse paralisado sem conseguir se mover.

Notou que a água o envolvia com sua grandeza, sentiu-se tonto e num momento se desequilibrou. Quando sentiu que cairia, uma mão o agarrou, trazendo-o de volta ao mundo em que vive.
Olhou com os olhos cheios d’água e aquela pessoa que o havia salvado, lhe falou algo muito estranho.
- Quando se quer viver, a morte se torna uma amiga. Venha comigo e lhe mostrarei que sua única vida é o presente.

liquidificador

sua única certeza é a sua morte
seu único obstáculo são seus defeitos
sua única escola são seus erros
seu único livro é o seu passado.

sua única esperança é o seu deus
sua única casa é o seu corpo
sua única mente é o conhecido
sua única vida é o presente.

seu único poder são as palavras
seu único ser é o pensamento
sua única religião é a fé
seu único deus é o amor.

seu único inferno é o ódio
sua única filosofia é o mistério
seu único mundo é o materialismo
sua única alma é o resultado.

sua única conclusão são suas críticas
sua única família é a evolução
sua única surpresa são seus sentimentos
sua única cegueira é o óbvio.

Depois de ter lido aquela mensagem no jornal da tarde, Dinah ficou por um longo tempo refletindo sobre a vida e sobre no que se transformara com o passar do tempo. Seu amor por Lucas se transformou em nojo; sentia nojo quando seu marido a tocava. E isto era horrível! Há quanto tempo se sentia uma morta-viva? E de certa forma era mais ridícula do que Lucas, pois ainda via nele um brilho no olhar, aquele mesmo brilho que não havia mais em seus olhos.
Seu filho a odiava e ela nunca fez nada para que isto mudasse, sua única preocupação foi sua confecção de roupas e seus negócios. Alexandre era um belo rapaz, tinha a vida inteira pela frente e precisava de um apoio familiar, mas o que ela sempre fez foi repreendê-lo.
Foi até a cozinha e teve a idéia de preparar um jantar especial para sua família. Ligou o aparelho de som e pôs uma bela canção dos anos setenta, que há tempos não ouvia.

Lucas chegou em casa exausto do trabalho, como sempre; retirou os sapatos e jogou-os na sala, como sempre; disse boa-noite para sua esposa, como sempre; foi para seu quarto e despiu-se a fim de tomar banho, como sempre e entrou no banheiro em seguida, como sempre fazia. Como se a sua vida fosse uma agenda de uma página só.
Ao entrar no banheiro, espantou-se e ficou sem reação e sem saber o que fazer. Dinah o esperava nua dentro do box. Quando voltou à realidade, deu um sorriso maroto e a beijou. Depois fizeram amor como se aquela fosse a última noite de suas vidas.

Após o banho, Dinah foi para a cozinha cantarolando, a fim de terminar o jantar e Lucas foi ao seu escritório para ouvir rapidamente as mensagens de sua secretária eletrônica.
Das mensagens que ouviu a terceira foi a mais surpreendente:

- Espero que esta mensagem venha lhes trazer muita paz e felicidade, pois agora me encontro assim. Estou neste momento seguindo em direção aos meus sonhos, com alguns amigos que conheci, pois o tempo não pára. Perdoem-me pelas desavenças de adolescente e eu também os perdôo pelas suas imperfeições. Não sei para onde estou indo, mas disseram-me que esse lugar é tudo que eu sempre quis, um lugar onde me tratarão bem, um lugar onde cuidarão de mim para que eu aceite a paz e o amor em minha vida.
Um dia com certeza nos encontraremos, e quando nos encontrarmos, eu terei certeza de que viver vale a pena e que seremos aquilo que sonhamos.
Bem, eu vou ter que desligar, pois eles estão me chamando.
Eu tenho que ir.
Tchau, amo vocês.



FIM


Flávio Cuervo

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