19 de abril de 2011

PÁTRIA

Seria ótimo se um milagre acontecesse e ganhássemos aquela batalha, o calor estava insuportável e os mosquitos não me deixavam em paz. Éramos apenas dez homens, os outros setenta e três estavam mortos.
Estávamos dentro das trincheiras há dois dias, esperando ajuda e também à espera dos inimigos que nunca vinham, os alemães.
Havia perdido meus melhores amigos naquela guerra ridícula, me faltava um dedo da mão esquerda e todos os meus princípios se perderam na primeira bala que disparei. Quantos alemães já matara? Não me importava em destruí-los. Adorava ver suas cabeças explodirem com se fossem balões.
Carl...
O que é, Paul?
Você está pensando em quê?
Não estou querendo pensar em nada, se você deixar, é claro.
- Eu não agüento mais ficar neste buraco, cheio de sanguessugas. Eu tenho que andar...
- Ótima idéia. Vá andar por aí, e não esqueça de dizer bom-dia aos nazistas.
- Pô! Que brincadeira de mau gosto. Passa o meu cigarro aí. Eu estou ansioso e preciso fumar.
Três são meus. OK?
Seus? Você já me deve vinte cigarros!
- Olha aqui, eu adoraria se você fosse um alemão nojento neste momento para eu estourar seus miolos, seu verme. E quer saber de uma coisa? Vá lá fora buscar seus magníficos cigarros. – disse, jogando a carteira para fora da trincheira.
Paul levantou-se e saiu para buscar a carteira que caíra a uns três metros. Abaixou-se para recolher os cigarros que haviam se espalhados e depois se levantou. Olhou para os lados antes de voltar e ao dar o primeiro passo ouviu algo se mexer nos arbustos, virou-se rapidamente e sentiu um tiro lhe acertar a orelha esquerda.
Ao ouvirem o tiro, todos os soldados do nosso grupo trataram de disparar suas armas também. Paul pulou dentro do buraco e ao olhá-lo, notei que a orelha atingida não mais existia.
- Vai ficar aí parado? Atire nos alemães! – gritei, enquanto atirava.
Eu não tenho mais orelha! Eu não tenho mais orelha!
- Cala a boca e atire! – disse irritado, apontando a arma para a sua cabeça.
- Vamos me mate... eu não agüento mais esta maldita guerra... todos nós vamos morrer... mate-me, eu prefiro morrer com uma arma nossa a uma nazista.
Não fale besteiras...
Se você não tem coragem de fazer...
Ao dizer aquilo, Paul sacou sua arma e apontou para a sua cabeça.
Pára com isso, por favor! Não é assim que as coisas se resolvem.
Cale a sua boca. – disse Paul, fechando os olhos.
- Tudo bem, aperte o gatilho. Eu já devia saber que você é um covarde.
- Eu não sou covarde. – disse ele, abrindo novamente os olhos. – Só que eu tenho o direito de decidir sobre a minha vida.
- Mas antes de se matar pense em mim e nos outros, que ficarão aqui se ferrando, enquanto você deu o fora, por não agüentar a pressão. Você mesmo foi quem decidiu em alistar-se, agora pegue a sua arma e atire, soldado! Ou você quer ver alemães invadindo a sua casa e matando toda a sua família? Você tem sangue judeu igual a mim, esqueceu?
Paul largou a arma pensativo e depois de fazer uma cara de raiva, virou-se para frente e começou a atirar.
Uma bomba explodiu ao nosso lado, então, levantei a cabeça e vi centenas de alemães saindo e se aproximando por entre as árvores. Estávamos ferrados, sozinhos e limitados a morrer.
- Capitão temos que sair daqui agora, ou seremos todos mortos! Capitão, temos que...
Olhei para a trincheira do lado direito e vi que todos estavam mortos, inclusive o capitão. Olhei para os dois homens que se encontravam nas árvores, mas os achei estirados no chão. Naquele momento um medo terrível me disse que estávamos sozinhos, todos os outros estavam mortos, mortos naquela guerra ridícula criada por um demente chamado Adolf Hitler.
- O que é que a gente faz agora? – perguntei a Paul. – Todos os outros estão mortos. Só restaram nós dois.
Veja o quanto de munição ainda temos.
Temos ainda, três granadas e alguns tiros de metralhadora.
Então trate de soltá-las!
Soltei então os três pinos das granadas ao mesmo tempo e as joguei. Ouvi gritos nazistas e tratei de correr para dentro da floresta. Corri o mais rápido que pude, mas ao olhar para trás não vi Paul, ele havia ficado dentro do fosso. Uma chuva de granadas então começou a cair, ensurdecendo meus ouvidos e me pondo em pânico.
Paul, saia daí agora! – gritei.
Quando me preparava para voltar, o vi saindo de dentro da trincheira. Mas naquele momento uma granada explodiu dentro do fosso, matando meu único e último amigo.
Comecei a correr sem rumo para longe dos alemães. Corria entre tombos e lágrimas. Eu não podia morrer! Eu não podia morrer!
As explosões e os tiros pareciam estar por todos os lados. Eu estava cercado, sozinho e indefeso. Caí de joelhos no chão e comecei a pedir a Deus que me perdoasse de todos os meu pecados.
Ao acabar a oração abri os olhos e vi na minha frente um buraco feito num pequeno morro, parecia ser a toca de algum tipo de roedor ou outro animal. Devia arriscar, ou era entrar naquele buraco, ou morrer ali fora. Enfiei então os braços e fui entrando. O espaço era apertado, eu mal podia me mexer e a minha respiração estava cada vez mais ofegante. Quando notei que meus pés já estavam bem dentro daquele buraco, parei de me rastejar. Então comecei a ouvir as bombas explodirem por todo os lugares. Alguns impactos eram bem fortes, fazendo tremer tudo ao redor.
Fiquei ali por um longo tempo, até ter a certeza de que eles já haviam ido. Arrastei-me para fora aliviado e ao sair um grande roedor com alguns filhotes entraram assustados para dentro da toca. Antes de sumir para dentro o roedor maior olhou-me, mostrou os dentes para mim e fez um som estranho com a boca.
- Obrigado senhora, a sua casa salvou a minha vida. – disse com um sorriso de alívio.
“Bem e agora?” – pensei. – “Tenho que achar um rádio para me comunicar com o resto da infantaria. Vou voltar onde estava, nas trincheiras, para ver o que sobrou de útil”.
Quando vi todos os meus companheiros mortos e mutilados, surpreendentemente não chorei e nem me emocionei, ao contrário, uma frieza levou-me a cavar nove covas e enterrar os corpos dos meus irmãos patriotas.


Vasculhei todo o campo, e o que encontrei foram: algumas granadas intactas na trincheira Dois; uma metralhadora em ótimo estado; mantimentos na mochila de um deles; maconha na mochila do Paul e o rádio transmissor perto do corpo do capitão, ou mais especificamente, uma terça parte do seu corpo.
Fiz contato com duas tropas a oeste dali, estavam perto das montanhas, preparando-se para a escalada. Recebi a resposta de que o lugar onde me encontrava fora dominado pelo exército alemão. Depois pediram para eu aguardar, pois conversariam com superiores para ver se me resgatariam.
A noite caía rapidamente e para piorar a minha situação, começara a chover fortemente, os raios eram constantes e o vento intenso. Acendi a minha lanterna e tentei fazer contato umas dez vezes, mas todos em vão. Estava com fome e sede, abaixei-me e bebi um pouco da água que se juntava nas folhas, já que a água do chão se misturava ao sangue tornando o solo todo vermelho.
Olhei para o rádio e decidi que tentaria novamente, e com êxito consegui contato.
- Aqui é o soldado Carl, eu estava tentando fazer contato há muito tempo, mas não...
“Socorro...” – som de explosões. - “Todos estão mortos e estou com muito medo... de morrer por...” – disse o soldado antes do contato cair.
- Meu Deus, todos morreram! Todos morreram! Todos estão mortos! – disse caindo de joelhos no chão.
Eu estava no centro dos inimigos, sem saber no que pensar, mas o pior era estar sozinho.
Deixei-me cair de costas naquela lama cheia de sanguessugas e sangue humano. Eu havia me entregado, ficaria ali até morrer, ou fazer aquilo que Paul não teve coragem de fazer. Entrei numa espécie de transe, parece que de repente o mundo havia parado, e eu entregue ao destino de morrer numa guerra hipócrita e demagoga. Enquanto eu morria de frio, já que a temperatura agora devia estar bem baixa, os meus superiores estavam em seus lares sob a proteção de milhares de homens em suas voltas.
Maldito mundo era aquele onde havia nascido, maldita era a pátria que me abandou e me entregou nas mãos da morte.


Quando despertei, não abri os olhos de imediato, queria abrir os olhos e me ver em outro lugar, longe de tudo aquilo, longe daquele pesadelo real chamado guerra. Senti que a chuva havia parado e o sol brilhava por entre as árvores. Podia ouvir também alguns pássaros nas suas arruaças matinais. Abri então os olhos e vi realmente o sol por entre as árvores. Levantei-me e tive tontura ao levantar. Senti sanguessugas por meu corpo e rapidamente tirei toda a minha roupa e fui arrancando-as uma a uma. Algumas foram fáceis de retirar, pois deviam estar bem alimentadas, mas outras me causaram grandes hematomas que não paravam de sangrar. Abri umas das mochilas que encontrara, peguei um isqueiro, aqueci uma faca e queimei os ferimentos feitos por elas. A dor era horrível, mas suportável por incrível que pareça, eu já havia me acostumado a ser uma cobaia humana.
Vesti a roupa novamente, e senti que o frio da noite anterior se dissipara, dando lugar a um calor moderado. O que eu queria naquele momento era poder comer um leitão inteiro, tomar um porre de cerveja e fazer amor com uma mulher. A maioria dos caras do meu pelotão se acalmavam com Phill, mas eu nunca tive coragem chegar e transar com um cara. Já que não tinha um leitão assado para poder ser devorado, o jeito era se contentar com barras de chocolate, uma laranja passada e uma lata de feijão enlatado. Depois que isto acabasse, teria que caçar ou comer a ração distribuída pelo exército.
Preparei um cigarrinho de maconha e o fumei, até que não era ruim, faz a gente rir sozinho. Quem diria que o Paul fumava maconha, eu nunca havia desconfiado, será que era por isso que ele era tão distraído daquele jeito?
Tentei fazer contato pelo rádio, mas aquela droga estava com defeito, às vezes ligava ou desligava sozinho. Rodei-o no ar e o lancei para longe dali. Eu tinha que fazer algo, aquele lugar estava começando a ter um cheiro estranho e eu precisava sair dali.
- Bem, as tropas estavam nas montanhas à oeste e foram massacradas pelos nazistas, e se os alemães combateram e destruíram nossas tropas, quer dizer que eram muitos, pois não eram poucos de nós também nas montanhas. E se o ataque foi no oeste, talvez o leste esteja menos povoado de nazistas. Bem, querendo ou não esta é a única solução a seguir. – peguei a bússola, me orientei, catei tudo que podia carregar e segui para o leste.
Caminhei durante dois dias sem ver nenhum alemão. Às vezes me lavava em córregos, matava uns animais e os assava em seguida. Onde estariam os alemães? Quem estava vencendo a guerra? Será que já acabara? Estas eram as perguntas que mais me incomodava. Em relação ao caminho que prosseguia, estava indo tudo bem. Ao passar por um certo lugar, encontrei vários soldados mortos de ambos os lados e também uma kit médico. Achei um mapa nazista de toda a região, com os lugares ocupados, e o mais importante é que onde me encontrava agora estava sob domínio das tropas aliadas, o único problema ainda era a comunicação com o mundo lá fora, pois os dois rádios que encontrei estavam destruídos. Estava indo tudo bem e se continuasse nessa direção sairia no litoral. Só que pelos meus cálculos, demoraria mais uns três dias.
Matei um coelho e o assava na pequena fogueira que havia feito, não queria fazer muito fogo, para não ter alguma surpresa inconveniente. O mapa dizia que estava em território aliado, mas as coisas mudam muito rápido numa guerra. Depois de me alimentar, subi em cima de uma árvore e me apoiei em dois galhos, para poder dormir um pouco. Ao longe podia ouvir urros de animais e alguns pássaros noturnos passando voando sobre mim. Dormi olhando a lua cheia e vi até uma estrela cadente.



Acordei antes do sol nascer, mas o dia já estava claro. Respirei bem forte e depois agradeci a Deus por mais uma noite de sono. Desci, peguei um pedaço do coelho que embrulhara nas folhas, retirei as saúvas e comi o restante. Com as coisas postas nas costas e com as armas ao alcance da mão, segui em frente.
Caminhei uma hora aproximadamente, então vi o corpo de um nazista, caminhei mais um pouco e encontrei mais três deles (um estava totalmente destroçado e outro sem a cabeça).
Ouvi um barulho nas folhas à direita, segurei a escopeta (além da escopeta: cinco granadas, uma pistola e um bom tanto de munição), e aguardei.
Urgh... – ouvi um gemido.
Comecei então a caminhar lentamente em direção ao que ouvira. – “Urgh...” – Ouvi novamente, só que bem mais perto. – “Deus do céu, me ajude!” – Olhei para o lado e vi apoiado numa árvore um soldado aliado, sem as duas mãos e coberto de moscas. Seu rosto estava deformado e um cheiro desagradável tomava conta do lugar. Minha mão começou a tremer e senti um frio percorrer meu corpo.
– “Me ajude, por favor”.– disse o soldado.
Andei mais um pouco em direção a ele e quando me aproximei mais, vi que suas pernas fraturadas.
Jesus Cristo. – Disse eu em voz baixa.
- O que está esperando? Mate-me, por favor... Estou agonizando há dois dias. Estou cheio de vermes e moscas.
- O que foi que aconteceu por aqui? – Tinha, em fim, conseguido falar.
- Os alemães nos surpreenderam e acabamos derrotados. Nós estávamos em maior número, mas eles tinham mais armas e aviões... também. Eu estou ferido no peito. Não consigo respirar direito. Fui atingido pelo impacto de uma das bombas dos aviões. – respondeu e começou a vomitar sangue, a pobre vítima.
Ele devia estar agora com uma hemorragia interna. Havia conseguido sobreviver inacreditavelmente por dois dias naquelas condições. O que é que eu podia fazer com ele? Matá-lo? Deixar que o destino fizesse a sua parte? Confesso que naquele momento senti que Deus era unicamente um grande brincalhão, sendo nós seus soldadinhos de chumbo.
Pensei bem e no final acabei fazendo o pior crime de uma guerra: matar um irmão patriota. Segurei minha escopeta firmemente para não tremer e antes de atirar senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto. Disparei e olhei para ter certeza de que realmente o havia matado. Virei e segui caminho.


Vi o sol nascer por mais quatro vezes, estava agora muito fraco, já havia abandonado quase todo o peso nas minhas costas pelo caminho. A dor pelo corpo era insuportável e completaria um dia e meio sem comer nada. Durante toda a manhã notei que só subia, parecendo um grande morro.
Sentei-me no solo, retirei a pistola da cintura e a coloquei de lado, tirei meu par de coturnos, fechei os olhos e tentei relaxar por algum momento. Lembrei então da minha mãe, depois do meu pai, dos meus irmãos, da rua da minha casa, da quadra de basquete, do ipê florido onde me encontrava com Violet, dos domingos na praia com os amigos e... De repente pareceu que a minha imaginação havia tomado conta dos meus sentidos. Eu podia jurar que ouvira as ondas do mar ao fundo. Mas eram apenas ilusões. Tornei a fechar os olhos e relaxar.
- Mas eu ouvi novamente! É real! É real! – saí correndo para cima do morro e um grande penhasco surgiu à minha frente. Lá embaixo a imensidão do mar azul abriu os braços para mim e na praia centenas de soldados com uniformes das tropas aliadas embarcavam em botes infláveis. Era real. Eu havia conseguido chegar ao fim. Eu era um vencedor.
Desci o mais rápido que pude e corri com os braços para cima em direção a eles. Todos me receberam e depois ouviram a minha história pessoal. Alguns se maravilhavam com o que dizia, mas outros tinham histórias semelhantes ou mais cruéis que a minha.
Fui mandado para casa e no avião a ansiedade de chegar era incrível.
Ao sair do aeroporto peguei um táxi até o começo da minha rua e depois comecei a caminhar. Vi que os ipês estavam floridos e as crianças brincando na rua como sempre.
Olhei para o jardim sempre bem cuidado e depois para a porta branca. Apertei a campainha e uma mulher cheia de esperanças nos olhos me atendeu. Ela me olhou por algum tempo depois me abraçou e entre lágrimas disse: “Oi filho, bem-vindo ao lar”.

FIM

Flávio Cuervo
* Perdoem-me por algum erro de gramática, não terei tempo para corrigí-los. Se acaso houver.

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